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Estas Pinturas


Olho pela primeira vez quadros de Ana Pimentel, estes quadros; nunca os vi, já os vi.
Nunca, por maior razão, já que bom número deles acabaram de ser feitos e agora se propõem à aventura de comunicar, preenchendo um espaço, já porque é assim o olhar, é assim a percepção, re-conhece sempre o que acaba de ver e, tratando-se de pinturas, objectos de longo curso na nossa cultura e hábitos, mais o reconhecimento se acentua, sabemos sempre de onde vem, desconhecemos, geralmente, para onde vai entre a função simbólica a que aspira nos melhores casos, ou à prática decorativa que é, na maior parte dos casos, a sua.
Depois de olhar estes trabalhos, poder-se-ia falar de outros pintores, poder-se-ia também falar, especulando, sobre as Escolas que “fazem” artistas, suas práticas, modos e resultados; porém, mais produtivo, mais imediato, mais certo com a função deste texto, será interrogar estas pinturas no seu aparecer e nos seus elementos constitutivos, ora formais, ora físicos, ora poéticos.

O QUADRO - O quadro é um limite físico e uma forma, rectangular ou quadrada que se impõe numa composição, tanto mais quanto esta tende a repetir no seu espaço o quadro, o quadrado dentro do quadro. Se os limites se impõem com tal força não vale a pena iludi-lo, repetem--se, afirmam-se, essa, a raiz de muita pintura que se transforma na cons-ciência e na prática de um objecto, este objecto, o quadro, quero dizer um limite, o seu limite físico, que a pintura combate ou, como vemos aqui, acentua.

O CÍRCULO - Signo de totalidade ele é a forma oposta à ortogonalidade do quadro quadrado. Nesta pintura ele surge, surge continuamente, modes-tamente, anedoticamente até, um pormenor que quase sempre pode ser lido enquanto figura: a roda de um carro, por exemplo, a marca repetí- vel, serial, ou ainda afirmação do centro ou dos bordos da composição. No centro torna-se expressamente num alvo, em diálogo com o labiríntico limite do quadro: “Tiro ao alvo”. Na aplicação figurativa pode tornar-se numa espécie de olho voraz e vertiginoso, pulsante, que por momentos parece destruir organização de pesos e medidas que é cada um destes trabalhos: “Estou louco por ti”. Há caso a caso, círculo a círculo, um principio ilimitado, domesticado embora, que se contrapõe ao império dos limites e do equilíbrio.

“ALEA” - Falemos do acaso, do scrible ou da garatuja, do escorrido e do pingado, do que se desaprende num risco que deixou de desenhar, esse é um território, melhor, um traçado de pequenas convulsões, muitas vezes a partir dos círculos, que tende a fazer vibrar estes trabalhos, que desmancham, empancam, fazem escorregar o olhar, como outros tantos sinais de uma liberdade possível e desejável.

COISAS - Coisas/coisas subentendidas na designação “técnica mista”, coisas que nos ajudariam a definir estes trabalhos como colagens, vendo, por exemplo, os cordéis que são muitas das suas linhas, sentindo a presença do desenho ou da grafite em tantos outros lugares; mas coisas que são, deliberadamente, formas, sempre.

LETRAS E PALAVRAS - No contraponto entre a letra capital pintada e a cursiva a lápis, entre a afirmação no espaço e o comentário e (ou) o título, entre o ilustrativo e o irónico, assim esta pintura se mostra, de/monstrando-se. Tudo se pode fazer em pintura, tudo se pode dizer também, Ana Pimentel tem a cada passo da sua prática como pintora, a plena consciência dessa situação; entre o “estilo e o grito”, entre o limite e a possível vertigem, os seus trabalhos são, caso a caso, a ilustração de uma fronteira, de um contraste, dir-se-ia até do desejo e do pudor. Assim esta pintura se vai lendo como uma contínua auto aprendizagem, entre perigos da satisfação que a acomoda e o pulsar expressivo que a percorre.


José Luís Porfírio
Director do Museu Nacional de Arte Antiga
Lisboa 2001